sexta-feira, março 31, 2006

A Crise- cena 2 e meio

Os três membros da família estão sentados na mesa da cozinha para o jantar. Tudo parece estar normal, mas um estranho silêncio faz com que Rita se aperceba que algo não está bem entre os seus pais:
- Então? Hoje não me perguntam nada? – diz ela.
- Não me apetece falar, amor. – responde-lhe Maria, com um ar triste.
- Eu também não vos contava nada sobre o meu dia, por isso não faz mal. – diz tentando sossegar a mãe – Estão chateados? – pergunta passado algum tempo.
- Sim, mas não te preocupes. – responde José com um sorriso forçado.
- Eu não estou preocupada. – responde-lhe Rita – Então se não vão falar durante o jantar, posso ligar a televisão para ver os desenhos animados. – diz decidida.
- NÃO. A HORA DE JANTAR NÃO É HORA DE VER TELEVISÃO. – dizem, quase em coro, Maria e José.
- Poça. Não falam, mas arranjam sempre alguma coisa para ralharem comigo. – diz Rita cabisbaixa.
- Nós não estamos chateados contigo, amor. – diz-lhe José, tentando desculpar-se dos gritos.
- Então se não estão, porque é que não me deixam ver a televisão? – pergunta-lhe Rita.
- Já sabes que é uma regra cá de casa. Às refeições não se vê televisão. – responde Maria.
- Pois, mas vocês dizem que é para que possamos falar uns com os outros. Mas se vocês hoje não falam, posso ver a televisão.
Maria e José sentem-se encurralados com a resposta de Rita e olham-se nos olhos. José é quem reage:
- A moço não deixa de ter a sua razão. – diz para Maria, enquanto se levanta para ir ligar a TV.
- Se é para ver TV, vou comer sozinha para outro lado. – diz Maria enquanto agarra nas suas coisas e sai decidida.
José e Rita ficam sem reacção perante a sua repentina decisão. José volta-se a sentar e continua a mexer no prato sem vontade de comer, enquanto Rita olha para ele preocupada.
- Deves de ter feito uma boa…..Deves deves…..Para ela estar assim…..uiui. – diz a José.
José olha para ela e diz-lhe:
- Cala-te, vê a televisão, e não me obrigues a pôr-te mais sopa no prato.
Rita tem intenções de responder, mas José, agarra na concha da sopa. Rita hesita. José não larga a concha. Rita olha para ele e tenta mais uma vez responder, mas José levanta a concha, cheia de sopa. Rita acaba por não dizer nada e desistir e José volta a pôr a concha dentro do tacho da sopa. Rita vai comendo enquanto olha para os desenhos animados que passam na TV e José vai comendo enquanto destrói migalhas de pão.
Passados uns segundos Maria volta a entrar. Nota-se que agora está zangada, não só com José, mas também com Rita. Rita não nota nada e diz-lhe:
- Olha, comi a sopa toda. Não foste tu que a fizeste, pois não?
- Andas a ficar demasiado parecida com o teu pai. – responde-lhe Maria de uma forma triste.
José tenta pôr água na fervura:
- A moça só está a brincar. De qualquer forma tem razão. Não foste tu que a fizeste, pois não? Ou então é a televisão que nos distrai do sabor.
- Há coisas sérias demais, que tu me disseste, que me tiram toda a paciência para ouvir as tuas habituais parvoíces. – diz Maria, zangada, a José.
- O pai fez-te mal? – pergunta-lhe Rita.
- Não amor, fez-me bem mas ainda não se apercebeu disso. – responde-lhe Maria.
José sente a resposta de Maria e fica sem reacção.
- Posso sair da mesa? – pergunta Rita.
- Sim, podes. – responde-lhe José, cabisbaixo.
Rita sai da cozinha, José e Maria ficam sozinhos.

quinta-feira, março 23, 2006

A Crise- cena 2

Manhã.
Maria está na casa de banho a olhar para o resultado do teste de gravidez. Nota-se alguma confusão sobre o que sente. Repete constantemente:
- Não…….Não pode ser…..Como é que isto aconteceu?
Mas à medida que as frases vão saindo, um sorriso de felicidade vai-se espalhando pelo seu rosto. No final, a alegria é bastante visível na forma como sorri, e no brilho que sai dos seus olhos.
José está na sala junto do computador portátil, no qual mexe com uma mão, enquanto com a outra segura a sua cabeça. A mesa está coberta de papéis relativas a contas, e José está a introduzir os valores no programa que utiliza para fazer a gestão monetária da família. Sempre que introduz um novo valor, suspira denotando algum desespero.
Maria entra na sala, irradiando felicidade e fazendo festas no seu ventre. Dirige-se a José e ao vê-lo triste pergunta-lhe:
- Então, que cara é essa?
José, sem deixar de olhar para o computador e com uma das mãos a apoiar a sua cabeça respondo-lhe:
- Estou a chegar à conclusão que somos uma organização sem fins lucrativos.
- Não te preocupes, se assim é, talvez nos possamos candidatar a um subsídio – diz-lhe Maria, tentando aliviar o ambiente e desejosa para lhe contar a novidade.
José continua o seu monólogo:
- Nos últimos anos temos tido prejuízo e se isto assim continuar, temos que pedir donativos a entidades superiores: aos nossos pais. – vira-se para Maria e continua – E digo-te mais, se fossemos uma empresa estava na hora de declarar falência.
Maria começa a perder o sorriso, mas não se dá por vencida:
- Bom. Tenho a certeza que estás a exagerar. As coisas não estão assim tão mal como tu as estás a pôr.
José olha para a cara de felicidade de Maria e reage:
- Com essa tua conversa, e essa tua cara de comprometida, espero que não tragas aí nenhum recibo de compra de roupa. – diz-lhe, desconfiado.
Maria continua a tentar desdramatizar a situação:
- Deixa-te de coisas. Não é nada disso. Afinal tens que te lembrar que a vida não é só dinheiro.
José volta-se para o computador e enquanto vai teclando com uma mão, vai dizendo:
- Pois….Tens razão, pelo que eu aqui vejo também é comida, roupa, livros, roupa, brinquedos, roupa, sapatos, roupa, médicos, roupa, medicamentos, roupa… - à medida que vai falando começa a instalar-se nele um certo pânico. É bruscamente interrompido pelo anúncio de Maria:
- Estou grávida. – diz-lhe de forma bem audível.
José pára, volta-se calmamente para Maria, sorri e diz-lhe, calmamente:
- Ok. Tens razão. Estava a precisar de apanhar um susto para descer à terra. Pronto, já me acalmei. Realmente as coisas podiam ser piores.
Maria perde o sorriso que tinha, olha José de frente e repete pausadamente e de uma forma que não deixa dúvidas:
- Estou mesmo grávida.
José é apanhado de surpresa e fica uns segundos hesitante sobre o que pode dizer, enquanto olha para Maria, para o computador, para os papéis das contas:
- Mas……Mas……Mas como? – acaba por perguntar.
Maria cruza os braços, olha para José, bastante irritada e diz-lhe:
- Posso-te garantir que não se trata de um milagre.
José continua sem saber o que dizer:
- Mas…..Mas…..Como é que deixaste isto acontecer?
Dos olhos de Maria saem faíscas, um misto de irritação e de desilusão ecoam nas suas palavras:
- Eu???? Eu deixei acontecer???? Não me lembro de te ter forçado a nada.
José hesita, como se estivesse a tentar recordar-se se foi ou não forçado a algo, o que irrita ainda mais Maria e depois continua a culpabilizá-la:
- Claro que não. Mas nós os homens, no que diz respeito ao sexo, somos uns irresponsáveis. Já devias de saber isso e tomar as devidas precauções. Afinal tu é que tens a chave de entrada.
Maria, completamente destroçada com a conversa diz, o mais calmamente que pode:
- Tens razão. Eu é que tenho a chave da entrada.
Mal termina a frase sai irritada. José volta-se para o computador, apercebe-se das asneiras que disse, carrega numa tecla e diz:
- Bumm!!! Navio ao fundo.

segunda-feira, março 20, 2006

A Crise- cena 1

À mesa, na cozinha, a família, constituída por três membros, está sentada para o jantar, José o pai, tem um ar preocupado. Maria, a mãe, dirige-se à filha, Rita:
- Então filha, como é que te correu o dia? – diz enquanto lhe despeja uma concha de sopa no prato.
- Não digo. – responde Rita.
- Porque é que nunca queres falar connosco ao jantar? – pergunta-lhe Maria, um pouco chateada.
- Porque me obrigam a comer a sopa. – responde decidida.
José deixa o ar carrancudo e diz, a sorrir:
- Bom, a moça tem razão. Esta sopa foi feita por ti, não foi? Também me tira a vontade de falar. – diz enquanto vai mexendo na sopa com a colher.
- Não comeces com isso. Se não estás contente, para a próxima fazes tu. – responde-lhe Maria irritada.
- A sério??? Deixas-me ser eu a fazer o jantar??? Posso mesmo?? – diz José entusiasmado com a ideia.
Maria apercebe-se do erro que acaba de cometer e tenta remediar o mesmo:
- Se não for para fazeres as porcarias fritas que costumas fazer…….Talvez. – diz-lhe enquanto o encara de frente.
- Olha lá, eu não ofendo as mixórdias de legumes com que tu nos castigas. – diz José irritado.
- Pai, passa-me aí o Sabemal – diz Rita a José, assim que este acaba de falar. José com um sorriso amarelo e a olhar para Maria, agarra no primeiro recipiente que encontra e passa-o a Rita.
- Não. Não é esse. Esse é o Blarg – diz Rita, rejeitando a comida que o pai lhe passou – É aquele que está ao lado do Provocarrepios.
José passa o recipiente correcto a Rita enquanto Maria o olha fixamente e lhe pergunta:
- Estavas a dizer o quê???
- São apenas nomes que eu inventei para que a mocita não tenha dificuldades em pedir as coisas. Tens que admitir que são mais fáceis de decorar que, Setã, Tofu e sei lá mais o quê. – diz José tentando-se desculpar– De qualquer forma, isso não interessa. Então amanhã, sou eu que faço a comida?
- Desde que não compres piza. – diz Maria enquanto se vai servindo de comida.
- Sim pai, PIZA. – grita Rita, entrando subitamente na conversa.
- Não podemos filha, o pai esteve a fazer contas antes de vir para mesa e temos que fazer poupanças. – responde-lhe para desgosto de Rita. Vira-se depois para Maria e continua – Pelo menos enquanto a mãe continuar a gastar tanto dinheiro em roupa.
Maria olha para José e diz-lhe:
- Por falar em poupanças. Porque raio está tanto frio cá em casa?
- Porque o gasóleo para o aquecimento não pára de aumentar e nós temos que poupar. – responde-lhe José, acentuando bem a última parte da frase.
- Não é preciso exagerar. A casa está gelada. – continua Maria.
- Isso são restos da estadia da tua mãe. – diz José enquanto começa a levantar os pratos da mesa.
- A minha mãe já se foi embora há uma semana. – diz Maria chateada com a insinuação.
- E a casa ainda está fria. – continua José, enquanto pisca o olho a Rita.
- Pai, o que é que a avó tem a ver com o frio que está na casa? – pergunta ingenuamente Rita.
- Já há muito tempo que não dormes no sofá, pois não? – diz, num tom ameaçador, Maria a José.
José apercebe-se que é melhor parar com a brincadeira e tenta mudar de assunto.
- Filha, não tem nada, o pai queria apenas dizer que....que..... – olha para Maria à procura de ajuda, mas esta está-se a divertir com a sua atrapalhação. José tenta então mudar de assunto:
– Queres que eu te vá buscar um casaco, por causa do frio? – pergunta a Maria.
Dirigindo-se depois para a filha:
– E tu se não te despachas a comer e continuas a fazer perguntas, levas com mais sopa.
- Bom. Deixa-te de brincadeiras e vai mas é ligar o aquecimento. – diz Maria enquanto Rita envia olhares reprovadores ao pai.
- Isso é que era bom. Viste o dinheirão que pagámos por encher o depósito com o raio do gasóleo? – diz José irritado.
- Então se está cheio temos que o gastar. – responde Maria, calmamente.
- Sim. Pelas contas que estive a fazer antes do jantar, temos três anos para o fazer. – conclui José.
- Deixa lá de ser sovina. Estamos a gelar aqui. – replica Maria.
- Porra. A lareira está acesa. – responde-lhe José.
- Porra é uma palavra feia. Vou escrever no quadro do não gostei que disseste mais uma palavra feia. – diz Rita saindo da mesa e dirigindo-se a uma pilha de papéis que se encontram pendurados no frigorífico, começando depois a escrever algo nos mesmos.
Ao fundo uma trémula chama sai da lareira. Maria aponta para a mesma e diz:
- Chamas àquilo uma lareira? Acho que está a consumir mais calor para tentar sobreviver do que aquele que consegue deitar cá para fora. – diz Maria gozando com José. Entretanto chega Rita carregada de papéis.
- Mãe, o quadro do não gostei já está cheio com os palavrões que o pai tem dito. – diz enquanto vai descarregando os mesmos no colo da mãe – Olha, só nos dias em que a avó cá esteve, enchi estas duas folhas. – diz mostrando à mãe duas folhas cheias de gatafunhos.
- E as asneiras que a avó disse? Também aí estão? – pergunta-lhe José, chateado.
- A avó não diz asneiras. – responde-lhe, decidida, Rita.
- Não??? E os nomes que ela me chamou quando eu lhe disse que a achava mais gorda? – diz irritado.
- Bom. Chega de conversa. – diz Maria, ao mesmo tempo que coloca as folhas em cima da mesa e se levanta – Acaba de arrumar a mesa enquanto eu vou ligar o aquecimento. - diz a José.
- Espera. Eu vou reavivar o lume. Não precisamos do aquecimento ligado. – diz José enquanto agarra em todas as folhas do quadro do não gostei e se dirige com elas para a lareira.
- NÃÃÃOOOOO. – grita Rita choramingando.
José pára. Volta atrás e dá de volta todas as folhas à filha, ao mesmo tempo que lhe diz:
- O pai estava a brincar. Toma lá. – vira-se depois para Maria e diz-lhe – Quando ela, realmente, souber escrever, acaba-se de vez com esta história do quadro do não gostei.